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Eupatheia

Poucos são aqueles que sabem dar a si a própria lei…

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Caio Gonçalves

Qual a melodia de nossa vida?

Mas como saber, afinal, a melodia que melhor se encaixa em nossa vida?

Para um músico a melodia vem e quando ela vem ele dá tudo de si, todavia ele coloca apenas aquilo que deve ser colocado e ele o faz de maneira única. Ele não sabe que ela vem, ele não pode prever quais dificuldades terá de transpor durante o processo de criação, então deve estar sempre em estado de alerta, uma espécie de vigília inconsciente, um sentido próprio voltado à música. Será que poderíamos ter esta mesma qualidade, todavia voltada para a vida?

Fonte: Gonçalves, Caio; O que é a felicidade: Uma filosofia para a vida; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2013

Somos muito tolerantes conosco

Somos muito tolerantes conosco. Precisamos ser.

Nesta sociedade onde a tolerância só é cultivada no que é mapeado, conhecido, nós definimos a normalidade como o atendimento a uma certa expectativa de relacionamento com a realidade, de modo de vida, então esta tendência sempre se dá para que outros, bem como nós mesmos, adaptemos o mundo a um certo tipo de interpretação necessário para que haja aderência ao já constituído, ao dado, portanto mudamos o mundo e nossas lembranças conforme a necessidade que se impõe sobre nossa vontade e, com o tempo, modificamos tanto nossas lembranças que tanto os fatos, como a parcela do acontecimento que mantivemos conosco, vão se perdendo. Este mundo paralelo de nossas lembranças, este novo universo, é evocado quando preciso e se torna cada vez mais ficcional, mais distorcido para atender, a cada vez, a uma nova demanda de justificação que se apresente na realidade. Com o tempo vamos esquecendo, as referências de nossas memórias, que em parte mantêm o vínculo com nossa consciência, vão se enfraquecendo tanto e se relativizando, que já se torna muito difícil encontrar elementos que nos façam recordar com alguma clareza; passamos a preencher cada vez mais as lacunas criadas, seja de forma necessária ao mecanismo de manipulação de nossas memórias, ou pelo simples processo de esquecimento e distensão de seus elementos na constituição de uma lembrança, necessárias enfim para dar a concretude requisitada pela consciência, pela realidade.

Fonte: Gonçalves, Caio; Fragilidade e Medo: do humano que há em nós; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2014.

Vida Enquanto Melodia

Assim como a música para ser bela deve estar muito além da censura, muito além de qualquer forma ou padrões para ser efetivamente criadora, nossa vida não deve ser pautada por nada além daqueles elementos que tornam nossa melodia mais e mais grandiosa. O artista sente aquilo que a música precisa e deve dar aquilo, nem mais e nem menos, deve haver harmonia, todavia como isso será interpretado por ele é sempre único e criativo. Não há planos ou melodias melhores, certo ou errado, há apenas a música que fazemos e ela é tão melhor quanto o prazer que sentimos em executá-la, pois a vida, assim como a música, faz suas exigências sem se preocupar se gostamos ou não, então devemos cultivar a beleza em participar desta relação inesperada e inescapável, pois a vida não para ou avisa.

Fonte: Gonçalves, Caio; O que é a felicidade: Uma filosofia para
a vida; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2013

Nós como sabotadores de nós mesmos

Nós somos nossos sabotadores, nós nos cegamos para nós mesmos e vemos aquilo que gostaríamos de ver, nunca aquilo que deveríamos ver e sentir. Vivemos uma ilusão que criamos de como nossa vida deveria ser, todavia, pensando melhor, será que realmente vemos aquilo que gostaríamos de ver? Porque em geral adequamos à visão que temos de nossa vida a uma suposta imagem de felicidade e sucesso? Felicidade e sucesso? Nós sabemos o que é isso? Sabemos o que representa afinal? Se é que isto represente qualquer coisa a não ser uma ideia, uma imagem transcendente em que depositamos tudo aquilo que a coletividade, que a sociedade, que nossos pais, projetam e constituem como meta a ser alcançada.

Por que temos de ter alguma meta, fico me perguntando. Por que a vida deve ter algum propósito além de ser vivida? Não entendo porque afinal temos de agradar. Por que agradar é algo que importa? Mas mesmo assim agradamos, tentamos agradar, desagradamos, seguimos em frente julgando e sendo julgados, pois, afinal de contas, se agradamos ou não é porque alguém, nem que seja nós mesmos, procuramos adequar nossos atos, nossa existência, nosso fulgor de vida, nosso tipo vital a uma imagem qualquer. Sua aderência ou não, é isto que agrada ou desagrada, mas, se isso é verdade, será que não somos apenas nós que fazemos este julgamento?

Afinal, independente se outros julgam ou não a aderência ou não de nossos atos com aquilo que é ou não a imagem do melhor a ser feito, somos nós mesmo que, no final das contas, aderimos ou não a este julgamento e, no fim de todas as coisas, somos os únicos e derradeiros juízes de nós mesmos, os críticos de nossa própria música…

Fonte: Gonçalves, Caio; O que é a felicidade: Uma filosofia para
a vida; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2013

Somos apenas humanos?

Sempre falamos do homem como um ser magnífico, responsável por inúmeras obras que modificam a paisagem e a realidade, tão imperioso, tão pretensioso, em um desafiar constante da natureza que há no mundo, um instaurador, um criador. Contudo, é curioso como este mesmo homem, tão sublime, condene sua humanidade a cada erro, a cada falha, dizendo com simplicidade e ingenuidade quase infantis: “Somos apenas humanos”.

Fonte: Gonçalves, Caio; Fragilidade e Medo: do humano que há em nós; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2014.

Que falta faz uma criança dentro de nós

Que falta faz uma criança dentro de nós. A criança olha o mundo e vê apenas seus gostos, suas paixões, seus amores. Ela pega a coisa mais improvável e torna brinquedo; ela é capaz de se arriscar sem sequer saber que um risco está correndo; ela ri diante de uma coisa boba, ri até mesmo do riso; ela chora diante da dor e pede colo sem vergonha, sem medo de dizer que precisa de ajuda e quer carinho; ela prefere alguma coisa e escolhe simplesmente porque ela gosta, porque ela quer; é capaz de brincar da coisa mais simples do mundo, da mais boba e pouco útil ou inteligente, centenas de vezes seguidas e a cada vez achar aquilo tão engraçado, tão divertido quanto da primeira vez; em suma, uma criança encara o mundo, a vida, como um parquinho, onde em cada coisa existe a possibilidade de uma nova experiência, uma alegria, um amor, uma amizade, simples assim, sem juízos muito rebuscados, sem conveniências, sem moral ou inteligência; enquanto os adultos pretensamente “superiores” olham o mundo como um parquinho de coisas afiadas e pontiagudas, de corte, de perigo, de utilidade, de ameaça, de competição… basta ele olhar o mundo para torná-lo a coisa mais triste e desagradável.

Fonte: Gonçalves, Caio; Fragilidade e Medo: do humano que há em nós; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2014.

Do medo e fragilidade

Quanta escuridão…

Quanto silêncio de repente…

Que quarto escuro é este onde estou? Em meio a escombros de tetos e paredes caídos me remexo tirando o pó que cobre minhas pálpebras, minha mente e não me deixam alcançar o pensamento.

Pensamento? Do que estou falando? É algum tipo de trem? De carro rápido? De corredeira? Não sei, como poderia saber? Ainda assim vejo algo passar e recortar os caminhos entre tais pedaços de testos e paredes caídos a remexer toda a confusão, deixando o ar mais limpo.

Paredes regulares, luz amarelada onde tudo parece mais pálido, mais magro, mais sombrio. Quarto estranho este onde estou, parece que sempre estive aqui, porém só agora vejo que aqui estou. Coisa estranha é a vida… ou seria eu que sou estranho? Ou me tornei estranho de mim mesmo? Nunca vi um lugar tão bagunçado, tão difícil de se mover, com tanto coisa empilhada a conter meus movimentos, tanto coisa suja e com cheiro de velho, velhas roupas, velhos mofos, velhas tábuas com coisas escritas.

Como está quente, abafado, mal consigo saber o que estou pensando. Pensando? De novo essa coisa de pensamento… coisa assustadora, coisa rápida, coisa ameaçadora. E esta fumaça a minha volta? Fumaça incolor que nubla o ambiente, minha visão já fatigada e avermelhada pelos anos de esforço para ver com tanta poeira, tanta fumaça escura e ainda incolor.

Acho que nunca vi muita coisa, para falar a verdade. Sei como é uma rosa, uma daquelas grandes e perfumadas… lembro do seu perfume adocicado e suave, sua pele aveludada e cor de sangue, seus espinhos pungentes a se destacar em meio a tanta delicadeza, ainda assim acho que nunca vi uma; lembro de pessoas, pessoas tristes correndo, pessoas rindo risos vazios, pessoas altas, pessoas baixas, pessoas dando cabeçadas umas nas outras sem nada de fértil sair deus suas bocas murchas e secas, mas coço a cabeça a me questionar sobre quando me encontrei verdadeiramente com alguma delas; lembro de crianças e estradas longas com seus acostamentos cheios de capim baixo, lembro do sorriso de criança sentindo o vento beijar-lhes as faces enquanto acelera-se pelo caminho, lembro da dor no estômago pelo enjoo após ver muitas e muitas árvores passando rapidamente pela vista, mas me pergunto se algum dia fui realmente uma criança, uma criança de fato.

Como a memória é falha, é pobre, é pouca. Seletiva sim, a escolher suas falhas e nossas fragilidades.

Olho uma vez mais e de súbito não reconheço o lugar. Estou em meu quarto? Ele é escuro? É somente um quarto? Onde estão as portas e paredes? Que grades são estas? Grades? Do que estou falando afinal? Janelas para que? Não sei para que serve isso tudo.

Sair… por que sair? Para que sair? A porta é feita para ser atravessada, para ser transposta, ser aberta, ser fechada, para ser porta.

Agora vejo janelas, vejo estantes, vejo móveis, vejo tudo apesar da luz e da fumaça que ainda insistem a incomodar, mas tudo me parece tão mais arrumado… estranho. “Como é solitário ser eu mesmo”, passou pela minha cabeça. Tenho até palavras, mas não voz ou vontade para dizê-las; tenho sussurros engasgados como bolas presas em um cano bem fino. Resta-me agonia, agonia e medo.

Vejo sombras, vultos de coisas, de pessoas, de vidas que passam, mas parecem não saber que estou ali olhando. Ali onde? E as sombras, de onde vem? Para onde vão? Eu as conheço? Acho que não. Me lembro delas, de suas silhuetas fracas criadas por luzes vacilantes de archotes velhos e gastos pelas repetições seculares, contudo nunca foram nada além disso: sombras que passam alheias a minha existência.

Como o quarto é amplo e apertado ao mesmo tempo. Ele se alarga conforme meu humor e se comprime em meio a dúvidas e coisas desarrumadas. Amplo como o mundo que se enrola e desenrola em toda sua diversidade; apertado como uma caixa de sapato opressiva para o ratinho que mal consegue respirar, com paredes móveis que vão e vem dando a impressão de liberdade, de espaço, sendo esta a coisa menos presente, menos disponível. Não importa, posso até andar pelo mundo e ainda assim, no fim, perceber nada além do quarto onde estou, como se o próprio fosse o quarto e mesmo o desejo dele sair terminasse em ilusão.

No quarto tudo é igual apesar de mudar, as paredes são iguais, as imagens são iguais, a ficção de mundo que construo é igual, pois sinto medo de pensar diferente, de ser diferente, parecendo tudo num átimo poeira e escombros de guerras perdidas.

Vejo a porta agora, uma porta estrita e com manchas vermelhas antigas, como cascas de sangues de inocentes corpos esmagados por construções vacilantes. Não sei se já a havia visto antes, mas corro aos tropeços esquivando de pedras e tijolos que inesperadamente começam a cair junto a tábuas que se partem e viram pó. Giro a maçaneta com uma estranha familiaridade, estranha para aquele que podia gerar jamais tê-la visto ou tocado. Sinto uma espécie de ansiedade e, acima de tudo, certo terror.

A rua se coloca diante de mim. Seus paralelepípedos muito bem arrumados, tendo pouco espaço entre eles para se tropeçar, mas ainda assim tenho a impressão de que poderia cair a qualquer momento. Estou trêmulo, vacilante, banhado em suor e apreensão. Pessoas surdas andam para todos os lados; apesar de surdas, tagarelam tanto que mal posso ouvir meus próprios pensamentos; tudo fica muito confuso perto delas. Mesmo que não fossem surdas, poderia arriscar que ainda assim não se ouviriam entre si. Muitas vozes iguais, com palavras iguais e mal ditas, o mesmo tom monótono e irritantemente vazio, entediante, uma cacofonia ordenada e desagradável, minhas pernas vacilam e dobram só de ouvi-las.

Sigo em frente sempre desviando desses humanos, dessa humanidade incômoda. Tento não esbarrar, quase caio e estremeço, pois bem posso acabar como sola de sapatos de pedra, como tamancos de anão. Sinto-me em um labirinto sufocante, um de gente ansiosa com corredores de pessoas enfileiradas sempre fazendo o mesmo corrido e enlouquecedor, a mesma cadência de morte que não permite um pulmão são respirar. Eu enfraqueço, dobro novamente os joelhos e sinto ceder.

Parece que estou no quarto, no mesmo solitário e pobre lugar, com a mesma luz amarelada e fumaça estranhamente incolor e turva, assim como minha alma embotada pelo medo permanece e paralisa minhas tensões. Não vejo altura alguma, nem morros ou montanhas, vejo apenas o quarto e suas paredes retas bem organizadas.

Quanta agonia imobilizada…

Quanta mesquinhez esquecida…

Quanta solidão…

Fonte: Gonçalves, Caio; Fragilidade e Medo: do humano que há em nós; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2014.

Dos Passos em Uma Estrada

Caminhar por uma longa, por uma profunda rua em direção ao sol de fim de tarde em um céu limpo de primavera.

Ele olha as casas passando, elas se vão lentamente enquanto caminha pensativo. Olha mais ao fundo e naquele momento vê como se a rua se fechasse ao longe, no horizonte de sua visão. O sol ofusca com cores flamejantes, um acobreado vivo que o faz apertar os olhos enquanto avança taciturno.

Os outros passam, as coisas passam… o barulho do mundo o envolve. Como o mundo é barulhento, pensa suspirando.
Sua atenção se volta aquele sol de fim de tarde que não parece se mover, sua luz não é apenas abundante como, pouco a pouco, parece tomar conta de seus sentidos. Lentamente os sons se vão, tornam-se um fundo para um caminhar solitário.

Sua vida torna-se solidão ou ela é solidão? Ninguém caminha com ele afinal, pois apenas ele dá seus passos e apenas ele constrói seu caminho nas pegadas que insiste em dar.

Ele olha sua vida, ele vê apenas pegadas e cenários em volta das pegadas, e um amontoado de coisas dispostas nestes cenários. Apenas uma coisa, acaba por perceber, é constante em naquela representação que cria para sua vida: suas pegadas.

As pessoas passam, elas mudam, as coisas vão, voltam, os elementos se modificam numa gama infinita de possibilidades ocorridas em sua vida, mas as pegadas estão sempre ali… firmes… solitárias.

Sua vida é suas pegadas, ele percebe. Nunca a rua a tua frente, ou mesmo as configurações de elementos a sua volta. Todas as possibilidades de eventos que pudessem ocorrer, mesmo que mudadas fossem as ocorrências de sua vida, suas decisões, todos os elementos, ainda assim uma coisa seria constante: suas pegadas e, talvez, o horizonte aonde aquele sol naquele momento vai lentamente se por.

Ele olha novamente suas pegadas e as coisas que passam, ele olha mais ao fundo e percebe também que enquanto ele não passar pelas coisas que estão por vir nada daquele caminho a frente poderá ser seu, nem mesmo os passos que tenta imaginar diante de si, pois as coisas, mesmo seus passos, se dão quando acontecem, no instante mesmo que acontecem.

A rua parece se fechar ao longe, se fecha por uma simples ilusão daquele que tenta ver para além do seu instante, do seu lugar presente em que imprime seus passos.

— Estou míope! — exclama para si mesmo em voz baixa, quase como um resmungo. Queria fazer seu aquele possível caminho a sua frente, queria possuí-lo naquele instante um instante que sequer podia ver claramente e pensa, afinal — “as frutas não devem cair do pé antes de maduras” — faz uma pausa olhando para uma árvore que passa ao lado e completa — “enquanto verdes, são apenas promessa de sabor e doçura, ou maciez e azedo… seja como for, a natureza diz que caia quando pronta está, mas isso não quer dizer que esteja escrito que a fruta tem o seu ciclo determinado, pois um vento forte, um mal tempo, uma seca, um verme qualquer” — o homem, por exemplo — “pode arrancá-la ou mesmo fazê-la perecer mesmo no pé, mesmo ainda verde, mesmo ainda em semente”.

Olhando este homem, não posso deixar de pensar que somos sempre um possível, um possível de muitas coisas, até de nós mesmos, mas então do que somos semente? Quem haverá de saber, a não ser cada qual de si mesmo.

Fonte: Gonçalves, Caio; O que é a felicidades: Uma filosofia para
a vida; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2013

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