Quanta escuridão…
Quanto silêncio de repente…
Que quarto escuro é este onde estou? Em meio a escombros de tetos e paredes caídos me remexo tirando o pó que cobre minhas pálpebras, minha mente e não me deixam alcançar o pensamento.
Pensamento? Do que estou falando? É algum tipo de trem? De carro rápido? De corredeira? Não sei, como poderia saber? Ainda assim vejo algo passar e recortar os caminhos entre tais pedaços de testos e paredes caídos a remexer toda a confusão, deixando o ar mais limpo.
Paredes regulares, luz amarelada onde tudo parece mais pálido, mais magro, mais sombrio. Quarto estranho este onde estou, parece que sempre estive aqui, porém só agora vejo que aqui estou. Coisa estranha é a vida… ou seria eu que sou estranho? Ou me tornei estranho de mim mesmo? Nunca vi um lugar tão bagunçado, tão difícil de se mover, com tanto coisa empilhada a conter meus movimentos, tanto coisa suja e com cheiro de velho, velhas roupas, velhos mofos, velhas tábuas com coisas escritas.
Como está quente, abafado, mal consigo saber o que estou pensando. Pensando? De novo essa coisa de pensamento… coisa assustadora, coisa rápida, coisa ameaçadora. E esta fumaça a minha volta? Fumaça incolor que nubla o ambiente, minha visão já fatigada e avermelhada pelos anos de esforço para ver com tanta poeira, tanta fumaça escura e ainda incolor.
Acho que nunca vi muita coisa, para falar a verdade. Sei como é uma rosa, uma daquelas grandes e perfumadas… lembro do seu perfume adocicado e suave, sua pele aveludada e cor de sangue, seus espinhos pungentes a se destacar em meio a tanta delicadeza, ainda assim acho que nunca vi uma; lembro de pessoas, pessoas tristes correndo, pessoas rindo risos vazios, pessoas altas, pessoas baixas, pessoas dando cabeçadas umas nas outras sem nada de fértil sair deus suas bocas murchas e secas, mas coço a cabeça a me questionar sobre quando me encontrei verdadeiramente com alguma delas; lembro de crianças e estradas longas com seus acostamentos cheios de capim baixo, lembro do sorriso de criança sentindo o vento beijar-lhes as faces enquanto acelera-se pelo caminho, lembro da dor no estômago pelo enjoo após ver muitas e muitas árvores passando rapidamente pela vista, mas me pergunto se algum dia fui realmente uma criança, uma criança de fato.
Como a memória é falha, é pobre, é pouca. Seletiva sim, a escolher suas falhas e nossas fragilidades.
Olho uma vez mais e de súbito não reconheço o lugar. Estou em meu quarto? Ele é escuro? É somente um quarto? Onde estão as portas e paredes? Que grades são estas? Grades? Do que estou falando afinal? Janelas para que? Não sei para que serve isso tudo.
Sair… por que sair? Para que sair? A porta é feita para ser atravessada, para ser transposta, ser aberta, ser fechada, para ser porta.
Agora vejo janelas, vejo estantes, vejo móveis, vejo tudo apesar da luz e da fumaça que ainda insistem a incomodar, mas tudo me parece tão mais arrumado… estranho. “Como é solitário ser eu mesmo”, passou pela minha cabeça. Tenho até palavras, mas não voz ou vontade para dizê-las; tenho sussurros engasgados como bolas presas em um cano bem fino. Resta-me agonia, agonia e medo.
Vejo sombras, vultos de coisas, de pessoas, de vidas que passam, mas parecem não saber que estou ali olhando. Ali onde? E as sombras, de onde vem? Para onde vão? Eu as conheço? Acho que não. Me lembro delas, de suas silhuetas fracas criadas por luzes vacilantes de archotes velhos e gastos pelas repetições seculares, contudo nunca foram nada além disso: sombras que passam alheias a minha existência.
Como o quarto é amplo e apertado ao mesmo tempo. Ele se alarga conforme meu humor e se comprime em meio a dúvidas e coisas desarrumadas. Amplo como o mundo que se enrola e desenrola em toda sua diversidade; apertado como uma caixa de sapato opressiva para o ratinho que mal consegue respirar, com paredes móveis que vão e vem dando a impressão de liberdade, de espaço, sendo esta a coisa menos presente, menos disponível. Não importa, posso até andar pelo mundo e ainda assim, no fim, perceber nada além do quarto onde estou, como se o próprio fosse o quarto e mesmo o desejo dele sair terminasse em ilusão.
No quarto tudo é igual apesar de mudar, as paredes são iguais, as imagens são iguais, a ficção de mundo que construo é igual, pois sinto medo de pensar diferente, de ser diferente, parecendo tudo num átimo poeira e escombros de guerras perdidas.
Vejo a porta agora, uma porta estrita e com manchas vermelhas antigas, como cascas de sangues de inocentes corpos esmagados por construções vacilantes. Não sei se já a havia visto antes, mas corro aos tropeços esquivando de pedras e tijolos que inesperadamente começam a cair junto a tábuas que se partem e viram pó. Giro a maçaneta com uma estranha familiaridade, estranha para aquele que podia gerar jamais tê-la visto ou tocado. Sinto uma espécie de ansiedade e, acima de tudo, certo terror.
A rua se coloca diante de mim. Seus paralelepípedos muito bem arrumados, tendo pouco espaço entre eles para se tropeçar, mas ainda assim tenho a impressão de que poderia cair a qualquer momento. Estou trêmulo, vacilante, banhado em suor e apreensão. Pessoas surdas andam para todos os lados; apesar de surdas, tagarelam tanto que mal posso ouvir meus próprios pensamentos; tudo fica muito confuso perto delas. Mesmo que não fossem surdas, poderia arriscar que ainda assim não se ouviriam entre si. Muitas vozes iguais, com palavras iguais e mal ditas, o mesmo tom monótono e irritantemente vazio, entediante, uma cacofonia ordenada e desagradável, minhas pernas vacilam e dobram só de ouvi-las.
Sigo em frente sempre desviando desses humanos, dessa humanidade incômoda. Tento não esbarrar, quase caio e estremeço, pois bem posso acabar como sola de sapatos de pedra, como tamancos de anão. Sinto-me em um labirinto sufocante, um de gente ansiosa com corredores de pessoas enfileiradas sempre fazendo o mesmo corrido e enlouquecedor, a mesma cadência de morte que não permite um pulmão são respirar. Eu enfraqueço, dobro novamente os joelhos e sinto ceder.
Parece que estou no quarto, no mesmo solitário e pobre lugar, com a mesma luz amarelada e fumaça estranhamente incolor e turva, assim como minha alma embotada pelo medo permanece e paralisa minhas tensões. Não vejo altura alguma, nem morros ou montanhas, vejo apenas o quarto e suas paredes retas bem organizadas.
Quanta agonia imobilizada…
Quanta mesquinhez esquecida…
Quanta solidão…
Fonte: Gonçalves, Caio; Fragilidade e Medo: do humano que há em nós; Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2014.
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